17 de out. de 2009

Avesso do avesso


Pergunta do Jornal “O Popular”: Justiça acertou na pena aplicada à ex-babá agressora?


Em 1870, em um pequeno condado dos Estados Unidos da América, uma menina com o nome de Mary Ellen sofria com os ataques de fúria de seus pais. Inconformada com a intensidade dos maus-tratos empregados em Mary Ellen, a comunidade religiosa local resolve procurar as instancias jurídicas para que as crueldades fossem interditadas. Os vizinhos de Mary Ellen pesquisaram todas as leis da época. Porém nenhuma garantia proteção e segurança à menina.

Como não dispunham de leis que pudessem protegê-la de seus agressores, a comunidade sensibilizou os membros da Sociedade Protetora dos Animais para que estes intercedessem a favor da menina, pois para os animais existiam leis de proteção contra as crueldades humanas. Com a alegação de que a criança também pertencia ao reino animal, foi possível então intervir junto à família a fim de inibir os seus comportamentos violentos.

O embaraço causado por esta situação deu origem à constituição, em 1871 da Sociedade de Prevenção da Crueldade Contra as Crianças (SPCC) – em menos de dez anos já existiam 34 sociedades como esta somente nos EUA. E foi pelo avesso que surge no mundo uma das primeiras organizações de proteção de crianças e adolescentes que sofrem por maus-tratos. A pequena Mary Ellen, precisou se retirar, perante a lei, da sua condição humana e passar para a de animal irracional para que pudesse ser protegida.
Hoje, 131 anos depois do famoso caso Mary Ellen, a legislação brasileira e seu código penal, revelam sua fragilidade e impotência como instrumento de proteção de nossas crianças e de punição dos respectivos agressores. No caso da ex-babá Divina Elaine Leite, 27 anos, após a definição da penalidade da agressora, dois comentários veiculados no jornal “O Popular” (dia 22 de agosto) me intrigaram. Um foi proferido pelo promotor de justiça, o senhor Spiridon Nicofotis Anyfabtis que dizia “ficou de bom tamanho, diante das provas”. Ele salientou ainda que o fato poderia ter sido mais grave, pois as crianças não sofreram lesões sérias. Fica então alguns questionamentos: Os critérios de gravidade para a lei contemplam apenas as seqüelas físicas? Quais provas seriam necessárias para evidenciar a gravidade do ato violento? O que está implicado na concepção de gravidade da lei?

A gravidade atribuída a uma violência não deveria ter como critério apenas as conseqüências e agravos físicos. É um grande equívoco deixarmos de lado a intensidade e a extensão da dor emocional, ao caracterizamos um ato violento. Medir a gravidade incluindo seqüelas emocionais e morais, além dos sinais de danos físicos é importante avanço. Porém, não é suficiente para dar significado ao sofrimento da vítima de violência. Pois, para quem sofre a violência, independemente, do surgimento de seqüelas imediatas ou futuras, a própria experiência de ter sido violentado já é em si grave e traumática.

Outro comentário – do juiz da Comarca de Aparecida de Goiânia – também me fez refletir sobre a penalidade imposta a ex-babá Divina Leite: “Os parlamentares deveriam fazer leis mais severas, e que embora aparentemente pequena (a penalidade) tem cunho de ressocialização”.

Em alguns casos é necessário uma severidade maior. Como em casos de agressores que possuem graves transtornos de personalidade e de conduta. Severidade é importante como um fator de inibição de novos comportamentos ou repetição de atos lesivos à integridade humana. Mas além do rigor da penalidade é necessário que a punição seja um dos caminhos e não o único. E que a severidade não seja compreendida como o retorno de práticas desumanas, com a visão do “olho por olho, dente por dente”. Práticas essas que não diminuem a incidência da violência, mas pelo contrário refina e intensifica os atos violentos. Para isso, uma série de outras medidas podem atuar nos fatores geradores ou facilitadores do comportamento violento. A aplicação de penas alternativas é um avanço no sistema penal brasileiro. Mas será que é pertinente no caso da ex-babá Divina Leite? Será que esta medida é capaz por si só de ressocializá-la?

A jovem mãe Divina Leite realmente conseguiria alterar suas atitudes e valores com uma pena alternativa dessa natureza? Até o momento, pelo menos aparentemente, esta senhora não esboçou, em seu depoimento um momento de reflexão sobre o seu comportamento. Não tentou reparar o que tinha feito com as crianças. Pelo contrário, jogou a responsabilidade das violências para a mãe, no momento em que diz que avisou que não gostava de cuidar de crianças. Não se colocou em instante nenhum no lugar da mãe ou das crianças. Não expressou compreender que era incorreto sua conduta com as crianças, mesmo que seja por um valor moral, legal ou religioso. Negou diante das câmaras que bateu nos meninos. Não expressou vergonha ou constrangimento diante das câmaras. Não externou medo das companheiras de cela que ameaçava agredi-la (ela disse que enfrentaria todas). Não demonstrou preocupação com o estado de seu filho se ficasse presa. Não expressou arrependimento por que fez com as crianças. E especialmente, não expressou compaixão por sua própria situação e pela das crianças.

O comportamento violento em casos graves tem um caráter compulsivo, ou seja, fora do controle da própria pessoa que o expressa. Na maioria dos casos, o agressor comete a violência, mas sente culpado, humilhado e impotente por não ser capaz de controlar seus impulsos e sua agressividade. Nestes casos mesmo que o sujeito queira evitar ele não consegue sozinho. É como o alcoolista que tenta parar de beber e não consegue. Estes precisam de ajuda profissional e suporte emocional e social. Para estes, as penas alternativas, acompanhadas de suporte social e de tratamento psicológico e psiquiátrico, são eficazes e eficientes. Mas a eficiência diminui em muito nos casos que o agressor não consegue sentir e entender como violento os seus atos lesivos.

Portanto, algo está pelo avesso neste desfecho do caso da babá que agrediu os filhos de Carla Fernanda Alves dos Santos e de João Batista. Então pergunto: após oito meses a pena alternativa alteraria as dificuldades encontradas no plano emocional, relacional e de valores da Divina Leite. Talvez ela não cometa violência com os filhos dos patrões, mas como trataria ou trata o seu próprio filho. Como ela tem se tratado? Será que, com a possível dificuldade de encontrar emprego depois de tudo que aconteceu, com a conseqüente instabilidade financeira e discriminação social suportaria manter ou cuidar de seu filho? A justiça se preocupou com o filho de Divina Leite? Afinal, nesta estória todas as crianças envolvidas precisam de proteção. A justiça se preocupa com o cheiro de impunidade que paira no ar? E a família que investiu tanto na Justiça, será que em outra situação acreditará nos caminhos da lei? Uma medida tão significativa como a pena alternativa pode ser vista pela população como um triunfo do agressor e da violência? Será que a Divina Leite passará de agressora a vítima, ao tentar acionar na justiça trabalhista os pais das crianças? Será que a aplicação desta penalidade não coloca Divina Leite em risco, pois a população pode se revoltar e fazer justiça pela próprias mãos?

Por que, para a nossa legislação brasileira, os crimes contra o patrimônio (como os bens econômicos ou naturais) têm penalidades mais severas do que os crimes contra a infância? Não são os nossos filhos, sejam crianças ou jovens, o nosso maior patrimônio.


Cida Alves, psicóloga com formação em psicodrama terapêutico e em terapia de família e casal, especialista em atendimentos de pessoas em situação de violência, mestre e doutoranda pelo Programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação/UFG e ex-secretária municipal de saúde de Bela Vista de Goiás.

Fonte: Uma versão resumida deste artigo foi publicada no Jornal O Popular em 01 de setembro de 2002. Goiânia Goiás




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